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17 abril 2009

Até onde a Amazônia pode resistir?

Do Descobrimento até o final da década de 70, apenas 4% de toda a Amazônia havia sido devastada. Isso corresponde a arrancar menos que um gomo de uma laranja. Nos últimos vinte anos, já se foram mais dois gomos. Hoje, a área desmatada da floresta equivale à de um país como a França. Essa ainda seria uma situação confortável se o futuro não prometesse coisa muito pior. Caso nada seja feito para estancar a destruição, daqui a apenas vinte anos poderão restar somente 28% de mata virgem na Amazônia, na hipótese mais benigna, ou ainda menos – 4,7% –, a se confirmarem as hipóteses mais pessimistas levantadas pelo grupo de cientistas liderado pelo biólogo americano William Laurance, pesquisador do Smithsonian Tropical Research Institute, um dos centros de pesquisa da prestigiosa Smithsonian Institution dos Estados Unidos, e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus.


Alberto Cesar
William Laurance: devastação em torno de uma hidrelétrica como a de Samuel vai a até 25 quilômetros das bordas do reservatório


Laurance, de 43 anos, criou um modelo de previsão matemática do desmatamento com base nas obras construídas na Amazônia. Ele é autor de mais de cinqüenta artigos e de dois livros sobre a região e vive em Manaus há cinco anos. Metido em bermudas largas, camisas pólo e sandálias, é capaz de passar horas sobre um pequeno computador portátil redigindo seus textos e fazendo cálculos. Com sua fórmula, o cientista projetou quanto pode ser destruído em volta de cada nova obra planejada no programa Avança Brasil, que começou a ser implementado pelo governo em janeiro deste ano. O que ele analisa, no fundo, é a medida da ocupação humana na maior reserva florestal contínua do planeta, uma região que abriga quinze vezes mais espécies de peixes que todos os rios europeus, guarda 20% da água potável do mundo e tem a maior linhagem de aves, primatas, roedores, jacarés, sapos, insetos e lagartos da Terra.

No meio dessa biodiversidade, o governo planeja pavimentar ou construir 8.000 quilômetros de estradas. Até 2007, devem estar operando mais de uma dezena de portos e quatro aeroportos novos ou ampliados, dois gasodutos, três usinas termelétricas, toda a segunda etapa da hidrelétrica de Tucuruí, mais a de Belo Monte, no Rio Xingu, e as hidrovias Araguaia–Tocantins (2.250 quilômetros) e do Madeira (1 056 quilômetros), além de milhares de quilômetros de linhas de transmissão de energia e de um novo trecho de 1.400 quilômetros da Ferrovia Norte–Sul. Em oito anos, a região terá recebido quase 40 bilhões de reais em investimentos.


Fotos Janduari Simões
Janduari Simões
Nepstad e seu experimento na Floresta do Tapajós: simulação de uma seca para estudar a reação da Amazônia na hipótese de ocorrer um mega El Niño

No passado, a implantação de projetos dessa magnitude criou situações que podem ser medidas com precisão – e é dessas medições que parte a projeção sombria de Laurance. Alguns dos piores resultados da ocupação podem ser vistos às margens de rodovias como a Belém–Brasília, aberta nos anos 60, e a PA-150, o corredor da madeira no leste do Pará. Um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) mediu a devastação provocada por essas duas rodovias, mais a da BR-364, que liga Cuiabá a Porto Velho, todas construídas nas últimas três décadas. Ao longo da Belém–Brasília, 55% da vegetação foi derrubada numa faixa de 50 quilômetros de cada lado da estrada. Às margens da PA-150, o índice ficou em 40% e, para a Cuiabá–Porto Velho, em 33%. O trabalho do Ipam concluiu ainda que dois terços do desmatamento total da Amazônia ocorreram nas vizinhanças de rodovias.

Nas projeções do biólogo William Laurance, às margens de uma estrada como a Cuiabá–Santarém, aberta nos anos 70 e cuja pavimentação está prevista no Avança Brasil, o desmatamento pode espalhar-se por até 200 quilômetros lateralmente ao asfalto. No caso das hidrelétricas, o avanço sobre a mata alcança uma extensão de até 25 quilômetros a partir das bordas dos reservatórios. Considerando o potencial de devastação de cada obra, a equipe projetou os totais desmatados. Para montar o cenário otimista, definiu-se a possibilidade de preservação de todas as reservas já existentes na Amazônia, florestais e indígenas. Na hipótese pessimista, calcula-se que os limites não serão respeitados em reservas à margem das estradas, por exemplo. O estudo conclui que as obras do Avança Brasil poderão incrementar em até um quarto os 20.000 quilômetros quadrados devastados todos os anos na floresta, totalizando uma superfície maior do que a do Estado de Sergipe podada a cada ano.

"É como permitir que se corte ao meio um bolo que antes era comido pelas bordas", diz Laurance, ao tratar da ação humana sobre a floresta. Ele se refere sobretudo à atividade das madeireiras, as pioneiras no avanço sobre a mata. O fenômeno da penetração seguindo a estrada como uma faca que vai separando nacos da região já pode ser observado no oeste do Pará, no entorno da BR-163, que liga a capital de Mato Grosso a Santarém. O esgotamento de antigos pólos madeireiros em outras regiões faz com que serrarias migrem dessas áreas para as margens da rodovia. Embora a estrada tenha sido aberta na década de 70 e permaneça sem pavimentação num trecho de mais de 1.000 quilômetros, quase impossível de transpor na época das chuvas, as madeireiras avançam em direção ao "meio do bolo". Ali existe um corredor de escoamento – precário, mas há –, e por ele milhares de metros cúbicos de espécies de alto valor comercial, como o ipê e o cedro, seguem para o sul ou sobem para o Porto de Santarém, para exportação. "A Cuiabá–Santarém é a verdadeira estrada da integração nacional", diz Edgar Antônio Brandt, presidente do Sindicato dos Madeireiros do Sudoeste do Pará, em Novo Progresso.

Esse município e a localidade de Moraes de Almeida, 100 quilômetros ao norte, concentram o mais novo pólo madeireiro da Amazônia. No final de 1997, não havia nem quinze serrarias instaladas por lá. Até o fim deste ano serão mais de 100. Em toda a rodovia, 150. Elas comem pelo menos 75.000 hectares de floresta por ano. Cerca de 1,5 milhão de metros cúbicos de madeira – com a qual se pode lotar mais de uma centena de navios – são retirados anualmente de lugares onde três anos atrás não se cortava uma única tora. Em 1995, Novo Progresso contava com 6.000 habitantes. Hoje tem 24.000. A vizinha Moraes de Almeida viveu o auge da produção de ouro, na década de 80, com 2.000 habitantes, escolas, hospitais, posto policial e até agência bancária. Quando o metal acabou, dez anos atrás, chegou a ter só 26 moradores. Agora, retomou o tamanho original. Como associa a chegada das madeireiras com progresso, a população das duas cidades se une aos destruidores da mata para reivindicar o asfaltamento da Cuiabá–Santarém. "Seria a realização de um sonho", afirma o prefeito de Novo Progresso, Juscelino Alves Rodrigues, do PSDB. O sindicato dos madeireiros calcula que, com o asfalto, o custo do frete da madeira, de 140 reais por metro cúbico, cairia quase à metade, tornando a região mais competitiva para esse tipo de comércio.

A ação destrutiva começa com a retirada da madeira. Em seguida, os madeireiros partem para uma área nova, e a terra arrasada que deixam para trás se transforma em local de plantação ou pastagem para gado. Pelas experiências do passado, sabe-se que o ciclo de aproveitamento da mata por esse modelo dura de vinte a 25 anos, gerando prosperidade e crescimento. Depois, vem a decadência. Ambientalistas acreditam que o asfalto é um meio de acelerar esse processo e que o governo deveria estudar mais o impacto de um programa como o Avança Brasil antes de iniciá-lo. Em Brasília, o ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, afirma que os projetos previstos para a Amazônia podem ser revistos, se ficar demonstrado que prejudicarão a floresta. Diz Sarney Filho que o BNDES tem 800.000 reais para a elaboração de um relatório de impacto ambiental sobre esses planos. "Dependendo do resultado, o Avança Brasil pode até ser modificado", garante o ministro. Os brasileiros devem ouvir declarações como essa com muita desconfiança. Governo após governo, Brasília sempre optou por projetos desmiolados para a Amazônia. Nunca, até hoje, o bom senso prevaleceu. Preferiu-se sempre uma aparência de movimentação e de progresso, à custa do meio ambiente.

"Não dá para imaginar a instalação de uma redoma sobre a floresta, condenando populações locais ao abandono", diz José Paulo Silveira, secretário de Planejamento e Investimentos Estratégicos do Ministério do Planejamento, responsável pelo Avança Brasil. "A ocupação é inevitável e, portanto, é melhor que seja planejada." Para entender esse raciocínio, deve-se ter em mente que existem 19 milhões de brasileiros vivendo nos nove Estados da Amazônia Legal, a maior parte deles precisando de médico, dentista, mantimento e até democracia – coisas que hoje custam a chegar por trilhas e barcos. Já há exemplos de estudos e de atividades na Amazônia que podem dar emprego e dignidade a essa gente, sem destruição. Pesquisadores do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), sediado em Belém, concluíram que a atividade madeireira é a grande vocação da região, que tem 83% de sua área imprestável para a agricultura ou a pecuária. O que parece um contra-senso – ambientalistas defendendo madeireiros – pode servir para demonstrar que, dependendo da maneira como é feita, a atividade das serrarias ajuda a preservar, em vez de devastar. Basta que se adote em larga escala o chamado manejo florestal, que consiste em selecionar as árvores a ser cortadas, retirá-las com o menor dano possível aos exemplares em volta e depois dar tempo para que aquela área da floresta se regenere. Ao contrário do que se costuma imaginar, não é nem o caso de plantar novas árvores. Basta deixar de pé os espécimes mais jovens e, dependendo do tipo de árvore, preservar alguns exemplares adultos, para gerar novas sementes. Essa atividade madeireira, que alia progresso econômico com preservação da natureza, exige, no entanto, um zelo formidável do poder público na tarefa de dar a permissão para o abate de árvores e fiscalizar ferozmente o cumprimento das regras de regeneração pelos empresários madeireiros. Do jeito que a coisa está, as madeireiras só destroem.

A pedido do Ministério do Meio Ambiente, o Imazon produziu outro relatório, em que identifica áreas públicas com potencial para a criação de florestas nacionais. Nessas áreas, nas quais já estão demarcadas florestas que somam 83.000 quilômetros quadrados, é permitida a exploração planejada de recursos naturais. Elas são arrendadas a terceiros mediante concorrência pública, e a retirada de árvores obedece a um planejamento, com fiscalização posterior do uso dessas áreas para evitar a destruição da natureza. Planeja-se chegar a 500.000 quilômetros quadrados – ou 10% da área total da Amazônia Legal. O Imazon calcula que com mais 200.000 quilômetros quadrados seria possível produzir o mesmo volume de madeira retirado hoje da região. "A criação de florestas controladas nas áreas para onde a indústria madeireira tende a se instalar é essencial para assegurar o manejo nessas novas fronteiras", diz o estudo. Como se vê, preservar não é tão difícil. Basta que a autoridade pública substitua a retórica pelo desejo efetivo de evitar a destruição do maior tesouro vegetal do planeta. O Fundo Mundial para a Natureza, uma organização preservacionista, estima em 500 bilhões de dólares o volume de dinheiro a ser tirado da exploração econômica de espécies selvagens. O Brasil entra nesse cálculo com 8% da madeira explorada no mundo, quase toda ilegalmente.

Para o ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, a preservação da Amazônia passa necessariamente por esse tipo de mudança na exploração dos recursos da floresta. Não se trata de proibir o acesso à riqueza natural, condenando os habitantes da área à falta de assistência. Trata-se, isso sim, de criar condições para a exploração racional e a fiscalização implacável. Isso foi o que não se viu até agora. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a quem cabe zelar pela preservação e pelo uso racional dos recursos naturais, tem hoje menos de 200 homens nessa função na Amazônia. Mesmo diante das lições do passado, Sarney Filho rejeita as previsões catastrofistas sobre a infra-estrutura que será levada à selva nos próximos anos. Acha que será possível conciliar progresso e preservação do meio ambiente. "O governo está muito atento à questão ambiental", diz o ministro. O Brasil reza para que ele esteja certo e tenha os meios de realizar sua profecia.

Pode ser que o ministro tenha razão e a catástrofe não ocorra, mas com a Amazônia sempre é necessário cuidado. Todas as experiências anteriores de ocupação resultaram em fiasco. No auge da exploração da borracha, era tamanha a riqueza dos empresários do látex que eles se vestiam como ingleses e estouravam garrafas de champanhe francês em Manaus com a naturalidade de quem abre latinhas de cerveja. Atualmente, falta até água limpa na capital do Estado do Amazonas, que é banhada pelos rios Negro e Solimões, dois gigantes. Quando o bilionário americano Daniel Ludwig começou seu sonho de fazer no Amapá uma superfábrica de polpa de papel, há três décadas, pescava-se o gigantesco pirarucu na periferia de Manaus. Agora, é necessário entrar 200 quilômetros mata adentro para pegar um exemplar de bom tamanho. O grande projeto de rasgar a floresta com a Transamazônica acabou num lamaçal rapidamente reabsorvido pela selva. As colônias criadas em Rondônia transformaram o Estado numa imensa capoeira.

Hoje se sabe que o que parece uma indestrutível massa vegetal plantada sobre rios imemoriais é, na verdade, um frágil sistema sujeito a se desintegrar diante do menor abalo. Se toda a história da Terra durasse um ano, a vida da selva seria de um segundo. Há 80 milhões de anos, a floresta era um braço de mar. Depois foi um pântano por longo período e se tornou um cerrado, até mais ou menos 1 milhão de anos atrás. Não é pequeno o risco de que, numa próxima etapa, a mata ceda lugar a um descampado. A própria situação climática tem demonstrado esse perigo.

O fenômeno El Niño – conhecido há mais de vinte anos, porém imprevisível – age na costa do Peru, do outro lado da Cordilheira dos Andes, mas repercute na Amazônia com secas prolongadas. Ele aumenta em até 4 graus centígrados a temperatura da água do Pacífico. Uma massa de ar aquecido eleva-se naquela região e acaba descendo do lado de cá, sobre a floresta brasileira. A estiagem, numa época em que o tempo deveria ser úmido, multiplica os incêndios. E o calor de cada incêndio mata árvores que estarão ressequidas na queimada seguinte, o que cria mais matéria-prima para o fogo. Acreditava-se até agora que os danos decorrentes do El Niño seriam menores com a redução das queimadas. Neste ano, por exemplo, o governo federal e o de Mato Grosso formaram brigadas de fiscais e conseguiram reduzir pela metade o total de focos de incêndio no Estado em relação ao ano passado.

Só que esse efeito do El Niño é apenas o visível, o que acontece na superfície. Embaixo da floresta, no meio do entrelaçamento de raízes que vão a 20 metros de profundidade para capturar nutrientes, essa seca causa danos cumulativos. A água armazenada no solo não volta aos níveis normais com a próxima estação chuvosa e a mata fica mais sujeita à destruição. O fogo é o grande risco. Todos esses complicadores do El Niño vêm sendo estudados e descritos pelo americano Daniel Nepstad, do Centro de Pesquisa Woods Hole (WHRC), de Massachusetts, nos Estados Unidos, e do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), entidade com sede em Belém. Nepstad, um biólogo de 42 anos doutorado pela Universidade de Yale, soma quase uma década de estudos na região e realiza um experimento dentro da Floresta Nacional do Tapajós, próxima à cidade paraense de Santarém. Ele cobriu 1 hectare de mata, área equivalente a um quarteirão, com 6.000 painéis de plástico dispostos horizontalmente a 1,5 metro do chão. Eles impedem que a chuva chegue ao solo, ao coletar a água e despejá-la a uma distância de 200 metros, por um sistema de calhas.

O processo simula a ação de um mega El Niño, deixando as raízes das árvores sem água. Computadores, aparelhos de medição instalados na vegetação e enormes buracos ao pé de algumas plantas completam o cenário. Ao lado do experimento, outro hectare de mata – sem a cobertura plástica – serve para comparação. Entre outras descobertas, Nepstad registrou que algumas árvores se defendem da seca estendendo suas raízes a até 50 metros do tronco, lateralmente, em busca de umidade. "Queremos saber quanto tempo esse pedaço de floresta agüenta até se tornar inflamável e, eventualmente, cair em pedaços com a mortalidade de árvores", diz ele. As árvores perdem folhas e isso é fatal, porque elas criam uma camada de material inflamável no chão, ao mesmo tempo que o sol alcança o solo e os troncos. Um lugar antes escuro e úmido torna-se quente e seco. Isso facilita tanto o incêndio ateado pelo homem quanto o fogo provocado naturalmente pela ação de raios.

Pelo lado da ação do homem, há alternativas para a exploração da Amazônia que não implicam devastação. A pesca esportiva, incipiente na área, reúne 35 milhões de adeptos no mundo e movimenta 38 bilhões de dólares por ano. Já se conhece um método de criação em cativeiro de pirarucu pelo qual cada exemplar leva metade do tempo normal para chegar ao peso de abate – mas a piscicultura não é largamente explorada. O ecoturismo gera 200.000 empregos só nos Estados Unidos e faz girar 260 bilhões de dólares por ano no mundo – menos de 0,05% disso na Amazônia. O Brasil está atrasado em todas essas frentes, assim como está longe de encontrar o modo racional de explorar reservas minerais enterradas na região e avaliadas em 1 trilhão de dólares. Só o projeto das florestas nacionais é pouco para conter a ameaça de devastação prevista nas pesquisas da equipe do biólogo William Laurance. Mesmo que os números que ele aponta possam ser piores que a realidade, eles indicam um perigo muito grave. Esperar para comprovar na prática que o cientista pode estar errado não é uma aposta confortável.

Fonte: Veja
Christian Schwartz, de Novo Progresso

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